Livro.

Hoje pressenti que o Vitor nunca se esquece de mim. Foi assim que desliguei o telemóvel quando ele me ligou pela quinta vez hoje só para saber como estava e para me dizer que já tinha saudades minhas. Pressenti-o como uma memória em mim ainda não habitada. Não sei explicar como foi. Pareceu-me uma visão, um pressentimento que de hoje em diante, vivendo calmamente o dia-a-dia, é em mim que pensa em contar cada coisa que vive. Estranho, mas o pensamento entranhou-se primeiro no coração, depois na alma, deixando sempre a cabeça de fora.
- Professora, posso entrar?
E assim fui arrebadata para a realidade, parecia-me que tinha adormecido.
- Entra Matilde, desculpa. Diz...
- Desculpe interromper, mas disse-me que precisava de me ver.
- Sim, entra. Vou ser directa, sabes que tenho faltado muito, não porque queira mas porque a minha quimioterapia assim o obriga. Sim Matilde, tenho um cancro da mama mas não vamos falar disso. Não quero, não gosto e isso desgasta-me. Gostava que me substituisses na regência da cadeira. Sei que o desejas e ambas sabemos que és a pessoa indicada para tal. Não quero que sintas que te nomeio pela minha rasca condição, apenas antecipo o que já sentias que eu ia fazer mais cedo ou mais tarde. A única coisa que te posso dizer é que o tempo que agora sinto breve e valioso preciso de o usar com as pessoas que mais amo e que mais me fazem feliz. Os meus dois filhos e o meu marido. Entendes?
- Sim, claro. Matilde ainda mantinha os olhos arregalados pela turbulência dos sentimentos.
- Gostava que me começasses a substituir já depois de amanhã.
- Mas a doutora não vai esperar pelo fim do ano lectivo? É já na próxima semana...
- Matilde, na minha vida, já esperei o que tinha esperar. Já se faz hora de ir e de fazer, de não deixar para amanhã. A única coisa que te posso dizer é que segue tudo aquilo que te faz realmente feliz. Assim também eu vou seguir quem me faz assim... feliz!
(...)
E deixei-me levantar e dirigi-me à carrinha A8 onde as duas cadeiras de bebés ainda estavam vazias. A Matilde meio recomposta ficou no gabinete que sei que vou para sempre chamar de meu, afinal a estreia dele pertence-me. Sei que o cargo está entregue à pessoa que mais ama Odontopediatria depois de mim. Já é hora de retomar a casa, ainda tenho de passar pelo infantário dos meus principes, a minha Maria Inês teima em não nascer, quem sabe se a sorte me presenteia e no próximo ano esteja mais viva do que nunca e de bebé ao colo. Mas o meu João Pedro e o meu Afonso Dinis estão cada vez mais belos. O Jó já vai com 5 anos e o Di com os seus 3 feitinhos no mês passado, na semana antes de saber o que eu tinha... O Jó é tal e qual eu, até na fisionomia. Aquelas pestanas são grandes como as minhas, já anda com a minha máquina fotográfica em punhoo que me faz tremer e já gosta do céu cor-de-rosa tal como eu. Ainda no outro dia, estava eu de volta do jantar ouço-o: "Anda cá mamã, anda ver o céu a abrir-se para nós, vem rápido!!! Anda que está quase na melhor parte" Eu tudo largo tudoe corro para junto dele. Mas o Di é tudo pai... Até no acordar e sim, nunca pára quieto e nunca, mas nunca larga o Playmobil, esses mesmos que ainda fazem sucesso desde 1974... Acreditariam se dissesse que alguns deles ainda são do meu marido? Mas é fácil saber quais são eles. Não, não é pelo aspecto deles, porque estão em perfeito bom estado. É porque os preferidos do Dinis são os que eram do papá e o mais engraçado é que o Di com 3 anos ainda não sabe fazer essa distinção, mas no coração dele acho que nunca houveram dúvidas...
Mas se ainda hoje me arrepio quando vejo o meu marido, imaginem no início da nossa relação... Parece que foi ontem, tanto mudou, mas bem no fundo tudo igual. Amo-o tanto, mas tanto mesmo... O doce do toque, o sorriso que tem secreto e que usa só comigo embora ele ainda não o saiba, a forma como me entende, e sim a força que me dá e o amor que tanto me tem e que me alimenta e me dá vida. Apoia-me como nunca ninguém o fez. E deu-me o que ambos temos de mais sagrado, os nossos bebés... Vou vencer esta batalha, no fim vai-me ser cedida a vitória da guerra e contigo vou comemorar. Vais-me levar a ver as estrelas como tantas vezes me levaste e vou sussurrar-te mais uma vez ao ouvido como eu te amo mais e mais a cada dia que passa...
Sempre tua e para sempre tua, meu amor.


[Um dia vou "começar" este livro.]

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