Ele.

Ele apareceu como sempre aparece.

Sorridente, dorido como um belo dia de sol num ríspido inverno. Mal se consegue sentar na cadeira, a perna ainda perde linfa como se não tivesse sido suturada. E foi. Já perfaz 6 vezes, mais vezes que o número das anestesias e mesmo assim, não consegue fechar. Não cicatriza. Será culpa do certican?

Ele diz que sim.

Será do alto dos seus 71 anos, o transplante renal que fez há 21 anda a pesar na contagem? Na brincadeira digo que se transplantaram o rim direito, deve cambalear para o lado esquerdo, assim sempre se consegue proteger. Pretendi eu almofadar as dores com sorrisos. E ele sorri. Ela também.

Diz que há dois anos meteu férias ao rim, para lhe fazerem uma raspagem à próstata. Achou que lhe fazia bem mudar de ares, lá se mudou ela da nefrologia para a urologia, sempre fica um pouquinho mais abaixo. Diz-me ele "Sabe, tenho que redefinir as prioridades. Como em mulheres só tive uma, a primeira, vou rodando as paixões nos órgão pelos quais já não morro de amores." Ela sorri atrás dele enquanto acena afirmativamente. O seu rosto sempre rosado, um olhar cansado e sorriso fácil. 

Como será difícil viver assim.

O corpo embrenhou-se nas férias, como quem prova açúcar pela primeira vez e pouco depois já estava novamente em férias por tempo indeterminado provocadas por  problemas de circulação sanguínea que resultaram num bypass em 2012; a cicatrização da safena não correu bem e, como tal, pouco depois teve de ser intervencionado à perna esquerda já decorria o ano de 2013. E se nós ficamos por aqui?

Claro que não.

"Sabe, eu sempre achei fascinante o universo feminino e, na minha humilde pessoa, achei que só o conheceria por fora, como um mágico olha na sua cartola. Nunca eu me imaginei também a precisar de Evax e de dizer em voz alta o famoso slogan de sentes te limpa sentes te bem. E não é que é verdade?!" A perna drena, as compressas acabam, os pensos sobram e são o último recurso. Mas até o senhor doutor ficou espantado com tamanha astúcia. O desespero realmente aguça o engenho!

A perna drena, ele limpa, ela faz penso.

Ele cansa-se, ela insiste.

Ele desmoralizada, ela faz piadas.

Ela está cansada, ele compra forças no e-bay.

Ele esquece-se das chaves e ela já tem o portão aberto.