O meu amor morreu.

O meu amor morreu.
Há cerca de 17 anos. Ela dorme todas as noites ao meu lado, continua a preparar-me o almoço respeitosamente ao meio dia como o meu momento mais precioso do dia, mas o meu amor, esse morreu. Conheci a minha esposa há 49 anos, não era a mais bonita da aldeia, devia ser nomeada com justiça a mais carinhosa da vila inteira, era a moça dos seus 16 anos que quando sorria iluminava uma sala inteira, eu já tinha os meus 20 e naquela altura tinha idade para saber o que queria, os meus 20 daquela altura, não são os mesmos 20 anos de hoje. Porém, hoje quem se senta à mesa e almoça comigo já não é a pessoa por quem me apaixonei; tem o mesmo corpo, a mesma idade e o mesmo rosto que a minha esposa de 65 anos, o olhar já não é o mesmo, perdeu o brilho e a luz. A cor parece-me agora, um verde mais escuro.
Há 17 anos que lhe foi diagnosticado um cancro colorretal no intestino grosso, ela tinha 48 anos e o nosso primeiro neto estava para completar 6 meses de vida. Quando soube o diagnóstico vi a força, a determinação e a coragem a roubarem-lhe a alma, vi a determinação que teve para me dar a mim e à nossa filha, mas com a cirurgia, a quimio e a radioterapia, esse ladrão roubou-me o meu maior tesouro. Em poucos meses perdi o que levei 6 anos a conquistar (ela sempre foi teimosa como a minha sogra!), sobrou-me um corpo de 1.69 com 71kg para cuidar. Caminha pelo seu pé, trata dos seus afazeres, mas já não sorri, já não aprecia uma tarde de sol, já não quer ir passear, agora detesta a praia e tudo o que antes fazia parte da nossa rotina. E eu não a contrario, não lhe vou fazer o que ela nunca me fez em 27 anos de casamento.
Mas sinto tanto a sua falta. Raios o partam, como sinto! Eu sei que ela não desistiu de viver, que só ela sabe o que sofre e as dores que tem, mas eu sei que ela tem medo de viver. Mal me fala, parece que no desenrolar da conversa está em pânico à espera que lhe diga que hoje é o meu último dia na nossa casa, quando vem cá o nosso neto Pedro e a netinha Camila (nasceu à 2 anos) fica melancólica e chora imenso, que já não os vai ver crescer. Mas que faço eu? Já nem me aquece os pés, eu sempre os tive gelados, contudo quando, raramente, os tenho quentes, não me deixa ser o seu amparo, não quer o meu abraço, e nas fotos, refugia-se sempre entre os netos e a nossa filha.
A minha filha não consegue mudá-la, habituou-se ao seu estado letárgico, para ela a mãe sempre assim foi. Mas eu sei o quanto me dói e o quanto é apaixonante ver a minha filha. Uma cópia da mãe quando eu era loucamente feliz. O meu genro diz-me sem se cansar que é um homem de sorte por ter encontrado a minha filha e eu não tenho vergonha de dizer que também eu, o invejo e que ele é mesmo um sortudo. Invejo não estar a viver o que sonhei, invejo não a ter nos meus braços, invejo quem passeia na marginal junto à praia, quando revisito um livro que lia nesses belos anos. Gosto de reler livros desses tempos, porque estupidamente acho que quando levantar a cabeça dessa leitura, ao ouvir a Luísa dizer o meu nome ao meio dia a chamar-me para almoçar, quando os meus olhos tocarem nos seus, irei encontrar o brilho e a luz que teimo em não esquecer. 
O meu amor morreu há 17 anos e apercebi-me hoje de manhã que ando nestes anos todos a negar um luto que já devia ter ultrapassado, ao revisitar a minha biblioteca e encontrar a carta perdida que ela me escreveu quando pensava que ia morrer dentro do seu livro preferido. Não me segurei, li-a de uma rajada e chorei. Chorei na casa de banho trancado, na suposta hora de banho de imersão. Chorei até secar.

Hoje ao almoço convidei a Luísa para irmos passear ao Gerês, nunca lá fomos e eu nem sei porquê. Ela permaneceu num silêncio interminável e quando me pareceu que tinha passado uma eternidade em que bebeu um minúsculo gole de água, apercebi-me de uma luz no seu olhar quando ela me sorriu ao responder "Há anos que dizes que me levas lá e eu sinceramente, adorava ir..." Pergunto-me agora, cegamente, há quantos anos terei eu morrido para a Luísa? Acho que morri há 17 anos quando o médico me disse que a minha esposa tinha menos de 6 semanas de vida. Qual o maior milagre nesta história parva que conto?? Ela ainda estar ao meu lado e dizer-me todas as noites quando pensa que já estou a dormir que sou o amor da vida dela...

Vamos ainda hoje para o Gerês.
Francisco

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