Banho de alma.

Nunca esquecerei o dia da libertação e agora a olhar a fotografia, parece-me que ainda sinto a brisa daquela quente manhã. Queria tocar nos militares para poder dizer que já tinha tocado em anjos. Diziam que vinham para matar, mas a verdade é que só os vi a salvar. Estava vestido de vermelho, em homenagem ao sangue derramado por irmãos meus de terra, atrás de mim os meus semelhantes imitavam-me enquanto a minha mãe suspirava. Eles não tinham noção do que se passava, apenas tudo o que eu fazia, eles repetiam.
Passaram 3 militares, eu intercedi junto do quarto que nada viu, ao todo julgo que eram nove, um deles falava ao telemóvel em inglês. Memorizei o que dissera sem o entender, finalmente hoje sei traduzir. “We did it sir! Now they are free people!” O sol brilhava ardentemente, o calor fazia sentir-se na pele e a minha casa era já memória do palácio que fora, estando leves tábuas a segurar a chapa cinza que fazia de portão. Como a minha mãe chorava nesse dia. Mais chorou, quando ela também vê no mesmo momento que eu, o meu irmão mais velho. Que regateiro ele era... Conseguira vendes 3 pratos partidos de cobre embutidos em linhas de ouro por um coelho que nessa mesma noite alimentou estateladamente 4 bocas, a minha mãe alimentava-se do nosso amor, dizia-nos ela. 

Mário que estás a fazer? Acabara de ouvir a minha esposa mesmo atrás de mim, nem reparei que já tinha saído do banho, estava agora à porta do escritório de robe envergado. 
Estou a ver em fotos aquilo que nunca esquecei. O dia da libertação. Estranhamente tenho saudades destes tempos...
Tens o quê? Saudades desse tempo? Então mas não tens melhor qualidade de vida agora? Luísa já estava a tirar a toalha do cabelo ainda encharcado como sempre fazia de cada vez que começava a argumentar, passando os dedos nos cabelos com olhar sensual para me provocar e assim, facilmente eu baixar a guarda.
Tu és muito esperta nesse movimento. Mas digo-te já, tirar por tirar, tira a toalha e o robe, por favor. Respondo-lhe já sábio na repetida jogada, mas sempre ela perdedora. Luísa vencia-me sempre naqueles propósitos. Ela fizera por não o ouvir. Pensava ainda no que lhe dissera e pior, sentia fortemente no peito, o sorriso que ele lhe devolvera quando referira as saudades.

Sentes mesmo saudades? Não te faço feliz? perguntava-me a minha esposa. 
Claro que fazes. Dissera-lhe enquanto caminhava na sua direcção. O que te digo é verdade. Eu tenho saudades mas é dos sentimentos daquela fase. De sentir que fui salvo, que a minha vida mudou verdadeiramente para melhor, naquele dia; que pertenço aos livros da história, não só em fotos, mas em relatos e que, honestamente,  a política é a melhor arma existente quando utilizada em favorecimento dos aflitos.
Ela parecera entender a forma da frase, mas não o conteúdo. Como pode alguém ter saudades da fase da vida em que mais sofreu e até um pai viu a ser morto à sua frente?! Ela nunca o iria entender. Mas, respeitava a dor e o silêncio de quem só conta tudo às paredes desertas e imaculadas de branco.
Sabes Mário, tenho dificuldade em entender. Como podes ter tu saudades do que passaste na suposta pior fase da tua vida?
É fácil de explicar, mas muito difícil de entender. Eu parei em silêncio a reformular as palavras que trazia aleatoriamente na algibeira. Foi a fase da minha vida em que me senti mais eu, mais livre, mais dono das minhas escolhas. Era só eu e eles, mas de modo egoísta, eu decidia por mim para dar-lhes tudo a eles! Porque o amanhã estava tão longe e o ontem já estava esquecido.
E agora queres ser verdadeiramente feliz como eras livre nessa fase?
Claro que sim. Mas não é assim tão fácil. Tenho-te a ti, tu tens-me a mim e precisamos um do outro para sermos nós!
Eu sei que não. Mas estive a pensar... Já estamos juntos há 5 anos. Eu gosto de ti, tu gostas de mim, trabalhamos, temos casa. Acho que temos o que é preciso para dar certo que é a força de vontade... Ele interrompe-me a ler-me o pensamento como sempre faz nos momentos em que mais preciso de desabafar.
Sim, eu quero ter um filho teu.
Queres? Pergunto-lhe num som inaudível.
Anda cá... E fui tomar banho pela segunda vez, mas um banho de alma.



Este texto que me saltou das mãos agora mesmo sobre o teclado é dedicado a quem nunca conheci, mas que entrou na minha vida com a força estrondosa de quem agarra a vida e não a quer largar. É dedicado a Manuel Forjaz.

Comentários

Postagens mais visitadas