Quase um mês sem ti.

Como viver sem ti? 
Tenho uma despensa no coração onde fui alojando o amor que tinha para te dar, onde estavam sonhos e conquistas que de mão dada ou à distância, tinha a certeza que seriam alcançados. Era no brilho dos teus olhos e no carinho dos teus abraços que eu sabia e tinha a certeza que chegaríamos lá. Como quem te via a levantar, a subir degraus de mãos soltas, a cavalgar de braços abertos, quase como quem quer voar. E foi tudo dispensado, fazendo de conta que os sentimentos têm validade, tudo caducou. 
Eu acreditava que eras a luz que inicia o por-do-sol, que numa louca e incansável vida, serias o número 1 do pódio em tudo a que estivesses disposto a participar. 
Hoje começa o outono. Escrevo hoje porque o mundo tal como o conhecia deixou de existir há algumas semanas e finalmente o outono e o inverno vão permitir que a estação do ano reflicta o que tenho sentido e guardado cá dentro - as folhas finalmente vão cair, a chuva vai disfarçar as minhas lágrimas e as longas noites vão obrigar-me a passar mais tempo em casa, estando mais tempo na cama, assim durante o tempo em que durmo não sinto a tua falta, fico anestesiada da dor da tua ausência.
A morte do filho da Judite abalou o país, lembro-me de um texto que escrevi, mas agora tenho uma irmã Judite. Como viver depois da perda de um filho? Não há como explicar, é sorrir sem sentir o calor da alegria, é comer o nosso prato preferido sem ficar consolado, é estar à lareira e não sentir o calor que esta emana, é não imaginar uma vida sem ti e ter de a continuar a viver. 
Então pensei, como honrar a tua ausência? Fui à minha despensa, alarguei a validade dos produtos que lá tenho e mudei o nome do destinatário: Lília e Bruno (mãe e pai do meu Sarrobico). Assim o que tinha para ti, não fica por dar, vou tentar encher o que se esvaziou, alegrar o que entristeceu, dar cor ao que a preto e branco ficou. Não vou conseguir sempre, mas tentarei e de cada vez que o conseguir, será também uma vitória tua. 
Mas esta vida que nos foi imposta, é dolorosa demais. É saber que somos tantos a querer trocar de lugar contigo e como a areia que nos cai por entre os dedos das mãos, não conseguimos agarrar a hipótese de voltar atrás. Porque essa hipótese nunca existiu. E, acredita, lembro-me de tudo ao nível do detalhe. 
Não nasci dotada com o dom da fé, não te consigo conceber noutro local a não ser junto aos teus pais e de todos nós, mas imagino-te como um dente-de-leão num dia de vento, voaste rumo ao infinito e ficámos todos nós polvilhados com tanto de ti, que as nossas memórias permitem-nos sorrir de cada vez que nos lembramos de ti, sem nunca te esquecer. E é deixar-te ir, sem deixar de te ter. É saber que um dia possivelmente terás irmãos e primos e mesmo sem te conhecerem, saber-te-ão de cor. Nós trataremos de tudo. Verão nas fotografias como eras feliz, como nos fizeste feliz e como o mundo mudou, sem nada ter mudado. E um dia o verão voltará quente como sempre foi, a saudade não irá doer tanto e tu serás sempre um sorriso feliz no meu rosto. Mas para já não quero estar feliz, preciso de fazer o meu luto, amparando os teus pais, os teus tios, os teus avós. 
Um dia irás aparecer nos meus sonhos, vamos dançar, correr, subir escadas, rampas e vais-me cansar, como sempre fizeste e vamos dançar sempre a nossa música, mesmo que ela toque e eu esteja acordada, obrigar-me-ei a dançá-la mesmo de mãos vazias e sem ti à minha frente. Vamos incompletos, desfeitos, mas vamos em frente. Levo-te comigo a todo o lado, levo-te nos meus sonhos, nas minhas conquistas, na minha escrita, nas minhas corridas, em tudo. 
No meu casamento serás como prometido o meu menino das alianças, em vez de caminhares à minha frente, irás sorridente como sempre, junto às minhas flores, preparadas pela tua madrinha. Serás o meu perfume e de braço dado ao meu pai iremos entrar num capítulo diferente, em que o cartão de cidadão dirá casada com quem mais me faz lembrar de ti, o teu tio André. 
O que mais mudou com a tua ausência? Sinto mais a força do amor, a alegria e a tristeza das músicas, o peso da saudade, a atroz velocidade do tempo, a efemeridade da vida, a certeza de que família é única coisa que importa e o que não interessa é fácil, manda-se para o caralho. É simples.
Na impossibilidade de trocar, repito, cuidarei do que ficou para trás, que somos todos nós. Eu guardo-te em mim, guardamos-te em nós. 
O teu pai ontem escreveu isto: "Aqueles que passam por nós, deixam muito de si e levam quase tudo de nós", chorei quando li porque é verdade, eu sinto isto mas permitam-me acrescentar que deixam o melhor e é isso que deve permanecer. O teu melhor, o nosso melhor.
E nunca, nunca desistir, leve-nos a vida onde levar, porque afinal, tudo mudou, e neste novo guião da vida, ninguém sabe para onde ir. Posso ir na frente, rumo ao horizonte, lugar onde te vi pela última vez. 

Comentários

Uma maravilhosa homenagem ao Pedrinho. Também eu recordo muitos detalhes, muitos pormenores dos sorrisos rasgados que pareciam emergir de um mundo encantado.

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