A ingratidão.

Foi um sonho estranho. 
O meu marido tinha morrido e eu caminhava lentamente no deserto, as lágrimas caíam-me do rosto na direção da areia, mas secavam na queda livre, sem lhe chegar a tocar. Estive assim durante alguns minutos, daqueles longos que roçam a eternidade. Ao fundo, como que uma miragem, vejo alguém de preto. 
Esse alguém, parece-me, vem na minha direção. 
Sinto o peso das memórias felizes, dos momentos passados ao lado do meu marido, uma das melhores fases da minha vida tolda-me a visão e aperta de tal modo o meu peito que chega a doer no coração. E quando doi o coração, a garganta aperta. E eu, estava assim. 
Alguém de preto fala:
- Nao tenho um braço e uma perna. Faltam-me também virtudes. Os membros que me faltam, algum terás de me dar. Para ter uma das tuas qualidades, um defeito terás de herdar. Agora decidirás. Das-me o teu braço direito e eu torno-te numa pessoa egoista. Dás-me a tua perna esquerda e ingrata serás. 
Silêncio.

Sou dentista. A preocupação do braço ficou evidente. O meu avô foi amputado a uma perna em 2000 e sabia das dificuldades que me esperavam. Mas perder o braço era o fim da carreira! O fim da vida que tinha até aquele preciso momento. Não tinha marido, morria a seguir a minha vida profissional. 
- Dou-te o meu braço.
- Porquê o braço?
 Acordei.

E tenho pensado nisto. Seria em parte o meu desejo de morrer de vez? De absorver a tristeza até tudo deixar de doer? Em parte será o consciente a manifestar o que nos envolve. Mas na distância de dias que já se passaram, há maior clareza no raciocínio. 
Ser egoista é fácil. É dizer eu. Simples! Eu isto, eu aquilo, que não consigo, eu quero, eu posso eu mando. Simples. 
Mas a ingratidão repugna-me. Talvez daí, eu ter dado o braço sem exitar. Morria ali o meu futuro, mas eu não deixava de ser quem era. Olho ao meu redor e vejo como a ingratidão me dá náuseas. Como é possível esquecer amor, carinho, dedicação?
Como é possível esquecerem do tempo investido, dos afectos dados, das horas passadas em convívio?
Como é possível esquecerem o tecto que os abrigou?
Como é possível olharem-me nos olhos como se o passado fosse uma ilusão?
E entre os ingratos, só tenho uma coisa mais a afirmar. Todos eles caminham solidamente (acham eles) em cima de uma corda. Essa corda que os seguram está sob o domínio de com quem convivem. Se a corda não é largada eles continuam nesse percurso. Mas com o nariz virado às estrelas. Mas quando a corda largar da triste mão que a segura. Duas hipóteses surgirão:
1) Cai na direção ao esquecimento.
2) Cai para a insensibilidade.

E ser insensível, é esquecer. Não como as doenças do cérebro, insensibilidade é uma doença do coração.

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