Às Judites,
Às Judites,
Escrevo-vos
como mãe que ainda não sou. Vivo de filhos imaginados, que não sei se terei,
mas já tanta angústia me dão. Serão saudáveis? Serão felizes? Dizem que filhos
criados, são trabalhos dobrados. A mim,
parece-me que ando a sofrer pela metade, numa vida respirada por inteiro.
Às
mães que perderam filhos aqui fica a minha confissão. Chamar-vos-ei Judites. O
dicionário não vos etiquetou com nenhum substantivo, por não imaginar tamanha
dor e eu, chamar-vos-ei assim por respeito e pouca imaginação num momento
destes.
Se
perder os meus pais ficarei órfã. Se os meus pais me perderem, perder-se-ão
comigo. Ao morrer levá-los-ei por completo, apenas um corpo ficará para trás que, mesmo respirando, vive agora ausente de tudo e todos, mas cheio de memórias
que moem, doem e apertam o nó que se formou sem pedir licença mesmo no centro
do peito e no fundo da garganta.
Imagino-os
como uma fina folha de papel A4 que se molhou e não consegue regressar à sua
forma inicial. Viver é preencher uma folha de papel, mesmo apagando memórias e momentos,
fica sempre lá uma marca do que aprendemos. As cicatrizes serão as pregas do
papel e as dobras, as rugas. Os sorrisos serão riscos de lápis arqueados,
outrora felizes rabiscos, já sem o fulgor de uma risada que nos enche o peito e
preenche a sala. Como se vive depois de perder um filho? Não se vive,
sobrevive-se. Os pais de filhos únicos acho que sofrem mais, não porque os
filhos são substituíveis, mas porque ainda lhes sobrarão motivos para viver: outros filhos por cuidar, netos por ver. Os pais de filhos únicos, multiplicaram o
risco! Não ouvirão novamente a palavra mãe e pai direcionada a si. Não ouvirão o que mais amam ser chamados, correndo o temível risco de esquecerem como cheiram magicamente os seus filhos. Ao ficarem sós, quando a imagem de uma velhice rodeada de netos se
desvanece de mãos dadas com o contorno do rosto do filho perdido. A entrada na
igreja de braço dado, a notícia de que serão avós, as chamadas sobre feitos
conquistados, a incapacidade de apagar da lista de contactos quem nunca mais
atenderá o telefone.
Tudo o
que é contranatura não deveria acontecer. Bebés deviam ser sempre saudáveis, só
se morria de velhice quando já estamos cansados de viver e sem mais sonhos
por realizar em que o derradeiro sono final fosse desejado. E tudo se devia
resumir a vidas felizes, preenchidas e vividas por inteiro. Os discursos não
ficariam suspensos, as palavras não ficariam por dizer, nem o tanto amor que temos, ficaria por dar. Parece que o guardamos para o transformar em nostalgia e
saudade.
Saudade,
palavra que dói. Que corrói, que corrompe.
Às
Judites deste mundo, lamento e sinto imenso. Lamento porque não devia acontecer
este tipo de brutalidade. Sinto que dói, que não vos
deixa voltar a ser quem eram, porque parte de vós se foi, a melhor. E vós foram com
eles. Eles não regressam, mas vós ficam do lado de cá de um espelho que vos
revela a todos os instantes que falta a maior e a melhor parte. Falta o ventre, fica o rasgo da sentida perda. Quando tenho um
pesadelo, como é bom acordar. Adorava ter o poder de acordar-vos do pesadelo em
que a vossa vida se transformou. Perdeu-se o norte no dicionário, a bússola não entende para que serve.
Perder
um filho, irmão de um gémeo. Ando a ler a Desumanização, a dor sente-se até ao caroço do coração de um fruto, até a mim me dói ver-me ao espelho imaginando que faço lembrar alguém
que já partiu.
Sería
igual a mim? Como deve doer só de olhar.
Gostava
de terminar com uma palavra de apoio e de esperança, mas apenas tristeza me
brota das flores que trago no regaço e do silêncio que é preenchido pelo
dedilhar no teclado.
Ninguém
devia nascer para sofrer assim.
Devia
ser proibido sentir dor sem fim, devia ser proibido morrerem os filhos aos
pais, pois todos aqueles que o são na essência da palavra aceitariam a troca,
sendo ou não justa, sem hesitar.
Lamento.
Sinto uma dor imaginada.
Pelas
mães sem filhos, por mim, que desejo um dia os ter e, mesmo não os tendo, já
sofro com o medo de os perder.
Hoje
bem, amanhã também? Ninguém sabe. Esqueçam os planos, vivam do vento que
insiste em soprar neste precipício que é a vida, sejam vírgulas nas vidas das pessoas, temam sempre a chegada sem pré-aviso do ponto final.
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