Algo tão simples e nobre como... Desfilar pela vida.

Ontem aconteceu-me algo maravilho, simples, emotivo, mas muito maravilho.
Durante a semana estive além de ocupada com a correria de casa-trabalho (a correria de sempre!) a pensar no ACACHEFE do 1241 e da minha ausência do mesmo, a minha mãe numa das suas perguntas recorrentes se vou a casa no fim-de-semana, informou-me que caso fosse iria com eles a um jantar cujo preço do mesmo, em parte revertia em prol da Liga Portuguesa da Luta contra o Cancro. "Ok!" pensei eu... No entanto, também me informa que a minha afilhada lá ia estar... Só uma pequena menina, já muito grande mulher que já não via lamentavelmente h´largos meses... "Ok, vou mesmo tentar ir..." Aliado a isto, seria sábado à noite, mesmo dia estava em congresso na minha cidade. Escrevo isto porquê, porque não ia minimamente preparada para o que aconteceu a seguir, nem tão pouco este evento me despertou mais atenção.
Chegámos, fomos iniciando a noite com as entradas, maravilhosas a par da fome com que estava e... entre conversas paralelas e cruzadas, foi diminuída a intensidade da luz e os olhares direccionaram-se para um púlpito mesmo junto à nossa mesa. Eu só tive de olhar em frente. Suspirar e imaginar o que viria a seguir.
Testemunhos em vídeo e textos escritos pelas sobreviventes ao cancro da mama. Que partilha maravilhosa! O embargo olhar de todos, lágrimas em todos, a emoção à flor da pele, o reviver de momentos penosos, as memórias, os sentimentos. A partilha de amor com os confidentes envolvidos em laço de cetim por estarem de mãos dadas com quem mais sofreu, mas manteve pé e mão ao lado de um coração em sofrimento. 
Há duas estórias que me tocaram particularmente, o motivo, conheço minimamente as protagonistas.
A mãe Cila.
A Ana.
A mãe Cila, teve cancro da mama, diagnosticado em 1999. Foi medo, foi pânico, foi perder o chão, como ela bem o disse. Foi medo de não ver os filhos adolescentes a crescer. Foi a única que não leu discurso, possivelmente pelas palavras tatuadas num coração aliviado pela distância que se faz sentir no passar do tempo, dos anos que já passaram e nada regressou do passado. A mãe Cila foi ama da minha afilhada, que por ouvir os seus filhos a tratarem-na por mãe, foi seguindo as pisadas dos filhos da barriga. A minha afilhada é sua filha de coração bem sei. A minha afilhada emocionou-se, chorou, tapou as lágrimas com o lenço de mão, tem 11 anos e já ouviu esta história de perto, junto a quem tanta vez lhe deu colo e amparo. Que coração grande o da minha Kinits. Foi maravilhoso ouvir a Cila contar a sua estória com um sorriso no rosto de quem teima em afirmar "Façam como eu, vivam, lutem, não desistam! Eu estou aqui! Eu estou feliz!" E está.
A Ana foi o caso mais emotivo para mim. Em parte por ser possivelmente o diagnóstico mais recente, por ter noção que toda a vila de Mortágua se mobilizou em prol da sua cura. Pela tenra idade, pela quantidade de sonhos por fabricar, inúmeros por realizar e pelo seu discurso atencioso para com todos. Ela felizmente sentiu que mesmo os sem rosto a apoiavam, que como ela disse "não imaginam como me ajudaram!" E agradeceu. Disse também que o facto de ter cancro a possibilitou fazer coisas que adorava fazer e que a correria do dia-a-dia não lhe permitiam fazer. Aproveitou para ler, ver televisão até se entediar e até aproveitou para tirar um curso de línguas. Maravilhoso. Ela é maravilhosa. Elas são todas maravilhosas. Todas elas, aliás. Foram vários os testemunhos e todos eles merecem a minha singela homenagem, pois por breves minutos o meu coração bateu em compasso com o delas e os meus olhos choraram as suas lágrimas. De dor, de medo, da perda. Mas a memória é selectiva, traiçoeira e posso trocar nomes e pormenores de vida que não quero adulterar. Fico-me por aqui. Mas a todas as "princesas" o meu bem-haja!
Todas, sem exceção, referiram o que já muito pensei eu se tal acontecesse comigo. O medo, a angústia de magoarem os que mais amam. De contarem ao marido, aos pais, o medo de não terem tempo para verem os filhos a crescer, o receio de não voltarem a ser quem eram. E não voltam. Ninguém volta, olha-se em frente e zangadas com o acaso, a malvada sorte alheia, rogam pragas ao seu Deus, questionando "porquê eu?". E se na redoma da vida eu agora perguntar "porque não eu?" Várias vezes ouvi um professor da faculdade dizer desenfreadamente que quem não morre de cancro, teve a sorte de morrer de outra coisa. Silêncio. Não sei que pensar. Simplesmente sempre achei parvo e arrogante o seu comentário tão repetitivo.  Estúpido até. Mas também eu faço piadas infelizes, também eu sofro da maleita de humor negro, quanto pior a piada, quiçá melhor o gosto em rir. Mas a morte em si é parva.
Devíamos todos nós morrer velhinhos, cansados de uma vida feliz, como quando naqueles longos dias felizes, precisamos de uma boa noite de sono, para fabricarmos sonhos superiores ao que vivenciámos nesse mesmo dia. Porque nos momentos mais felizes da vida, há muita dificuldade em adormecer, em parte porque os melhores sonhos são como um copo de leite morno num dia de inverno muito frio.
Ouvi partilhas, ouvi desabafos de corações apertados em mamas cirúrgicas de um peito remexido, por tentativas de uma vida melhor, mais feliz.
E julgo que tudo isso aconteceu. As "princesas" estão felizes, têm em seu redor quem mais amam, a sua família, os seus pilares.
Agradeço do fundo do coração tudo o que ouvi, ontem saí melhor pessoa, mais atenta com os pormenores da minha pacata vida feliz, da sorte que tenho de ainda ter ao meu redor, os meus. E no dia que o cancro aparecer (porque não aparece só nos outros, nas outras famílias) terei rostos, moradas de lares que me abrirão a porta. Sei que perguntarei ainda ser fulgor o inevitável "E agora o que faço?" Imagino um ligeiro sorriso e uma resposta dada em surdina que temo que não ouvirei. Direi algo do género "Deixem-me chorar agora tudo (...)" Mas sei que nunca se chora tudo, até porque o choro seco, sem lágrimas visíveis é o pior, essas escorrem por dentro. Mas quando se chora na sombra da solidão, a dor é sempre maior, é a pior. E eu quero chorar de braço dado com alguém. E felizmente, não vi mulheres sós, nenhuma estava sozinha.

Dedico este texto a todas as intervenientes, no entanto, deixo um grande beijo à minha tia Gigi, sei que estamos no início da maratona, mas a meta será sem dúvida o nosso final feliz. Acredita, porque eu acredito em ti, em nós. 

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