A varanda.

Ela falou muito baixinho, a querer negar o que tinha sucedido. A negar a ausência que o ardor no peito não a permite esquecer. Ela não quer esquecer. Não se esquece um filho. Vive-se da saudade que mata por dentro um coração que insiste em bater, sem vida para saborear.
Disse-me que nunca gostou que ele se balançasse junto à varanda enquanto o vento lhe desalinhava os caracóis, sempre lhe berrou para não fazer... Bem só o fez até Dezembro do ano passado quando ele entre berros e num olhar triste lhe disse "Deixa-me fingir que voo, por favor! Deixa!!!" e eu fui deixando. Que parva eu sou!!! Nunca gostei que o fizesse, nunca, nunca! Ficava sempre a ver e de coração apertado parecia-me que apanhava balanço e quando chegava com o corpo balanceado junto à varanda tudo parava até o corpo balançar para trás, novamente. Ele é autista, vive no mundo dele, sonha com o sol a beijar a lua, quer que a gata da vizinha namore com o nosso periquito porque segundo ele ambos têm as cores mais bonitas que já viu e deles nascerá o arco-íris mais bonito da que não há memória. Eu gosto de embarcar nas suas estórias, de rasgar as ondas ao som da sua voz, gosto de me orientar no oceano pelas estrelas que ele traz no olhar, mas agora só tenho um negro céu de ferrugem, sem lua, sem estrelas. O meu grande medo, nasceu de uma gargalhada dele e ainda hoje acho que foi a sua melhor e maior gargalhada dele. Tão pura... Mas eu gritei de terror!

Ele saltou da varanda. 

(Silêncio)

Não me lembro de descer as escadas, também terei saltado? Que parvoíce... Quando o olhei nos olhos, estava deitado de barriga para baixo e já jorrava sangue do nariz. 
-"Olha mãe... Gelatina de morango!"
-"Filipe, que fizeste tu?!"
-"Mãe, eu hoje voei! Tu vinhas de mão dada comigo, como és linda quando o vento te penteia os sonhos! Estou tão feliz..."
Chorei em surdina.

Não soube que dizer, não sei que dizer. 

Ele saltou da varanda de um 10º andar que eu nunca quis ter, mas o preço pareceu-me ser a única vantagem no negócio. Depois do pai ter falecido num acidente de viação, morre-me um filho. O prolongamento do meu amor, o nosso melhor.

Passados 10 anos, no mesmo dia, do mesmo mês. 
Acordei nesse dia e chorei, já não me consegui deitar sem ser a chorar. Mentira. Deitaram-me e puseram-me a dormir, agora vagueio nos sonhos que ele me deixou como memórias.

"Dra, acha que posso ficar autista, para ter algo que me ligue a um filho morto? Parece um disparate não é? Então arranque-me este dente que me dói, mas sem anestesia, quero ter uma dor diferente, uma dor maior, para pode sofrer de outra dor para me sentir viva, porque até agora esta dor só me vem matando por dentro!"

"Por favor eu juro que vou aguentar, quem aguenta o que eu aguento, isto será fácil..."

Não conto já o que sucedeu a seguir, posso apenas dizer que não demonstrou qualquer sinal de dor, agradeceu, deu-me um longo abraço e saiu. A irmã esperava na sala de espera, entrou só para me agradecer a paciência que tenho com a irmã. Eu lamentei-me a dizer que não fiz nada demais. E não. 


Na história clínica preenchida pela doente e em colaboração com a irmã, a doente sofre de doença bipolar e não pode engravidar por ter tido um carcinoma uterino aos 16 anos, nunca casou, nunca teve filhos e vive com esta irmã desde os 21 anos, já há 25 anos que moram juntas. O que ela mais gosta de fazer é de estar sentada na varanda da irmã a sentir o vento no rosto. A irmã vendeu o antigo apartamento, um 10º andar, moram agora no rés-do-chão. 
Fiz a consulta normalmente (claro que anestesiei). 

Senti os olhos encherem-se de lágrimas, esvaziei-os agora enquanto escrevo.

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