A minha Rute.
Conheci a minha Rute quando ainda não me conhecia a mim mesma. Estadia obrigatória, era a minha, na casa do Carlinhos. Por vezes, ela aparecia - sempre grande, altiva, voz grossa à procura da tia Geninha. À primeira memória que me assalta, ela chegava sempre com olhar sério de quem vê para além do que queremos mostrar. Os anos passam. Recordo vê-la de novo, agora em perfil de quem assina o que traça, com toda a sua presença num rosto que não o dela, num quadro no corredor da casa do Carlinhos. Vejo os traços negros de carvão, forte rabisco, imitando o seu caminhar vigoroso sem ser pesado. Recordo a expressão no olhar, anos antes - não mudou, está até mais intenso, e sei hoje que no seu largo sorriso é quando se desmancha e revela o coração grande, mesmo grande que tem. Dá sem receber, dá para todo o mundo ver.
Sente, cada um do seu jeito. Cada um, não como quer, como a vida deixa.
Sente, cada um do seu jeito. Cada um, não como quer, como a vida deixa.
Os anos passam. A última vez que estive em casa do Carlinhos foi no verão passado, à Rute, lancei o anzol para pescar comigo no profundo mar dos meus sonhos. Ainda não lhe conheço a profundidade. Devo medi-la, assim que tenha tempo, em anos. Os metros são para medir saudades. Os anos medem a intensidade dos sonhos. Os mais fortes parecem demorar uma eternidade. Não sei. Há ano e meio que sussurramos uma à outra os nossos segredos, há dez pinturas que traduzem o que ela viu na minha alma, quando escrevi uma história (ainda por desvendar) com o meu pequeno coração.
A Rute, tem muito talento. Mas é a garra dela que me enche o peito. A forma como defende o seu traço, como convictamente assume que odeia perder - "Se for para perder, não jogo!" Mas tu não perdes, nem deixas quem se encontre em teu redor, se perca. Sabes os caminhos, mesmo sem mapa, desenhas o labirinto sabendo de cor em que canto escondeste a porta. E eu, de olhos fechados, caminho a teu lado - de braço dado.
Gosto quando me dizes que corro para c#r&lh8, quando bem sabes que o faço há muito pouco tempo, dá-me genica, mas também me puxa para manter a passada, o ritmo vai variando com a destreinada sístole do meu coração. Como eu te quero bem, como eu te quero ver a crescer, a sonhar, a chegar lá. O lá é mesmo à esquerda do infinito, é no lado do peito, onde a dor desaparece e o sonho cresce. A melhor parte? Quando a realidade supera a imaginação, quando os traços da tua mão contam as histórias de tantas gentes, de tantos peitos habitados por memórias de pessoas já ausentes. Os velhos - conheci-te mais aqui. Falámos da morte, da perda, do sonho, de fadas, de diabetes. Não tenho pressa, sei que no fundo tu também não, afinal, tal como eu, tu queres é que seja sempre bem feito. Fazes-me falta, às quintas, na A1; curiosamente é quando falamos.
"Se for para perder, não jogo!"
Rute, se for para eu me perder, que seja contigo. Sei que desenharás o caminho de regresso a um futuro quente - de afectos, num sorriso meigo e ao mesmo tempo forte, porque quem tem ar de durão, tem sempre o coração maior... e mole. Mas não é mole de fraco, a vida não é rija para ti, nós é que somos duras para a vida.
É ou não é?
Rute Gonzalez “O meu atelier é uma maternidade.”
Licenciada em Pintura pela ARCA ETAC – Escola Universitária das Artes de Coimbra, com experiência em Educação Visual, Artes Plásticas e Design, conta no seu percurso artístico com inúmeras exposições de Pintura e Desenho, quer individuais, quer coletivas, por diversas vilas e cidades do país.
Comentários