O menino dele.

Conheci o Fernando como um alvo conhece uma bala, veio direitinho a mim e a dor foi cada vez maior, mesmo no peito, com tiro certeiro, sem defeito. Só hoje consigo escrever sobre isto. O Fernando tem 58 anos e foi pai aos 26. Tem dois filhos, o Jorge e o Luís, hoje com 29. O Jorge aos 4 meses foi diagnostico com fibrose quística, o Luís é aparentemente saudável, o Jorge faleceu aos 16. Os mesmo anos em que outros respiram por ele.
O Jorge sempre foi um menino muito carinhoso, muito beijoqueiro, de muito mimo. Gostava de cuidar e acarinhar os seus, especialmente quem cuidava dele, o pai disse-me que era o menino da mamã. A vida dele nunca foi normal, frequentou pouco a escola, esteve a maior parte do tempo internado, em casa estava quase sempre deitado, sentia-se muito cansado; mal saía, mas era um menino optimista e em casa a harmonia e a alegria eram constantes. A longa noite do Jorge veio no alto dos seus 16 anos, os pulmões não resistiram e o Jorge adormeceu eternamente.

- "Sabe o que sobrou? Sobraram os restos, como na comida depois de um dia de festa. Sobrei eu, a minha esposa, o meu segundo filho. E ele sabe que sempre foi segundo, porque o mais velho sempre teve de ser o primeiro. A minha esposa está sempre em depressão. Já tentou três empregos, mas não consegue! Desiste sempre. Chora muito. Não sai de casa, não gosta de festas. Diz que tudo lhe lembra o Jorge. Mesmo os nossos sobrinhos! Ela tem irmãs já com netos, mas mesmo em almoços de família ela não consegue desligar. Não consegue! Diz que é demais. Que se lembra do nosso Jorge, sem nunca o esquecer. E mais, sabe... Quando falamos dele, é melhor. Mas de todas as vezes em que volto ao momento da sua partida, é uma dor alucinante. E fica a tristeza..."
-"Mas o facto de lhe perguntar como é perder um filho e falarmos sobre isto, eu ponho-o pior?"
-"Não, até me dá prazer. O problema, é que o meu menino foi um filho maravilhoso. Você não me põe pior, eu é que estou sempre mal. Mesmo eu que perdi um filho, não sei o que dizer a quem vem ter comigo na minha situação. O passar do tempo, mostra o peso da saudade. E acredite, a cada dia que passa, é pior. O meu Jorge era muito doente, mas estava ali. Dias difíceis, dias mais fáceis, infelizmente sem poder trocar, ele estava ali. Agora só lá está o silêncio, as coisas dele e a luz da ausência, nem a sombra dele temos."
-"Não sei o que dizer. Devia ser impossível isto acontecer!"
-"Digo-lhe mais. O meu filho morreu duas vezes! Morreu no dia em que morreu e morreu 10 anos depois. Como lhe disse, ele era muito carinhoso e brincalhão, quando surgiu o voice mail, ele uma vez, às escondidas, propositadamente deixou uma mensagem no meu telemóvel a dizer-me o quanto me amava. Veja lá, a mim.
Quando ele morreu, fui no dia a seguir à TMN (na altura, veja lá!) pedir se podiam arranjar uma alternativa a não apagarem a mensagem, eu pagava o que eles quisessem. Expliquei o que tinha acontecido e eles foram impecáveis. Conseguimos ter a mensagem no telemóvel cerca de 10 anos e quando andávamos piores, ouvíamos, chorávamos, mas parece que aquilo nos aliviava. Um dia, liguei e já não deu. Foi o segundo dia em que o meu filho morreu. Foi para esquecer! Parece que nesse dia ainda foi pior!" 
-"E o seu Luís? Já tem filhos?"
-"O meu Luís? Não... Não tem, nem acho que terá, o que é uma pena! Diz que o amor que tinha pelo irmão era demais, muito grande. E eu sei que era. Era o irmão mais velho o seu ídolo. Que o irmão tudo aguentava com um sorriso e que só de pensar que pode perder mais alguém, prefere não ter!"
-"E você, o que acha?"
-"Acho que ele faz mal. Mas eu já perdi um filho, não vou argumentar isto e aquilo para perder o segundo. E ele, acredite, tem os olhos de Deus. Ele vê tudo o que trago cá dentro."





NOTA: Afibrosa quística, cujo nome deriva do aspecto quístico e fibroso do pâncreas, é uma disfunção das glândulas exócrinas, afectando diversos sistemas e órgãos, é a doença genética fatal mais comum entre crianças de raça caucasiana.
http://apfq.pt

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