A Alice.

Conheci a Alice, há 3 anos. 
Muito simpática, atenciosa, honesta e terrivelmente trabalhadora - as mãos não enganavam a lavoura forte que ultrapassava no dia-a-dia. Tinha 21 anos, a mais nova de seis irmãos (todos eles a trabalhar no campo), ela também o fazia, mas vazia de paixão em trabalhar a terra.  Em Valadares, ainda é assim. 
Na altura levantava-se às 5h, às 6h30 estava no campo. Às 15h seguia para os mercados abastecedores de onde saía às 18h, chegando a casa já por volta das 20h. Não é preciso ser um ás a matemática para entender que, o que fazia num dia, muitos de nós levamos dias a atingir. 
Orgulhosamente, há meio ano disse-me que finalmente ia deixar o campo. Uma amiga fazia limpezas em casas particulares e já a abarrotar sugeriu sociedade, revezaram-se na altura e poucos meses depois já estavam super ocupadas e com o negócio a florir. 
Apercebi-me, na altura, pela mãe da Alice, que ela fazia limpeza na escola primária, no café dos bombeiros, em 5 casas privadas e na mercearia. Não conseguia negar as ofertas, sempre a tentar chegar a todo o lado, ela era de fibra e gabava-se disso. Assim, pouco tempo depois os rendimentos ascendiam aos 1000€. O que nunca sonhou, com a suspeita que os rendimentos ascenderiam. A vida melhorava, sentia que felizmente a sorte estava a mudar. "Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe." Finalmente, ia poder comprar uma casinha para começar a sua verdadeira independência, deixando de vez aquele T0 alugado. 

Hoje vi a mãe da Alice, ensaiada de preto, lábios finos brancos a direito, perguntei por ela, como estava a filha, como quem pergunta a um fantasma como foi desenterrado. Contou-me tudo sem chorar.

"A minha Alice? Deus a tenha. 
Faz hoje um mês e meio que morreu. Andava sempre a correr de um lado para o outro por causa das limpezas, para aqui - depois para ali, sempre. Mas eu via a minha filha feliz, a minha única filha. Adormeceu ao volante mesmo depois de almoço. E assim foi.  Andava há 3 semanas numa roda viva, porque a amiga adoeceu com uma terrível gripe e a minha Alice nunca soube dizer não, andava a fazer as horas dela e as da Júlia. Ai... Dizem que não sofreu, que foi morte imediata.
A vida é muito madrasta. Na hora do acidente, segundo os bombeiros, estava no café a comprar uma raspadinha - até àquele dia nunca tive vontade de o fazer - mas levantei-me e comprei a maldita. Calharam-me 1000€, ainda a tenho aqui... Olhe veja - neste espaço de tempo, mostra-me a raspadinha de pé de meia com a quantia referida - acredita que não a consigo trocar? Tenho para mim que, se o fizer, é como trocar a vida que me foi roubada por meia dúzia de tostões." 

Ainda choro.

Alice, onde quer que estejas, tenho saudades tuas. 

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