Carta à vida - quando uma amiga nossa adoece, também nós ficamos doentes.

Pedi à vida uma amiga. Uma que nada tivesse a ver com a minha existência até ao momento. Que nada soubesse de mim, que não me falasse de dentes, que não conhecesse ninguém dos meus. Pedi à vida uma lufada de ar fresco.

Não é que as minhas amigas me sejam insuficientes, não é que precise de mais, que precise de ter por ter; talvez seja a minha incessante perda infinita. A Marta estava longe, um pouco mais perto, é certo, mas longe ao mesmo tempo; a Inês tinha seguido para Moçambique e mais tarde foi para a Argentina, a Carina na Alemanha, a Mariana ou em Mortágua ou em quilómetros do IP3 a caminho de Viseu e eu na minha correria de sempre. E eu... Eu limitei-me a pedir à vida uma amiga. Porque todas que já estiveram muito perto, estão agora longe. E como filha única que sou, pedi apenas uma única coisa - a que mais queria. Pedi e a vida deu-me. Possivelmente na minha solidão quis alguém para mim em Coimbra. 
Numa das aulas do 2º ano do programa doutoral encontrei-a sentada na sala de aula, com purpurinas e setas no ar na sua direcção. E eu pensei - ali está ela! Tinha os dentes impecavelmente brancos e direitinhos, um sorriso muito meigo que contrastava com a poderosa voz que ostentava. Ela é mulher do norte! Insistia em colocar a madeixa de cabelo atrás da orelha esquerda enquanto a mesma teimava em sair do sítio. Ela era minha até às 18h, depois saía impreterivelmente para os bracinhos da sua filha. Nunca discutimos e, em pouco tempo, já terminava as minhas frases. O presente que pedi à vida tinha-o à minha frente. 

A vida foi-me generosa, como sempre tem sido e deu-me a D. 
A D. não é uma princesa, é uma rainha. Não é ela que é salva pelo príncipe encantado; ela é quem monta o cavalo e vai em galope apressado até ao desfiladeiro, ela é a voz doce que acalma, que ajuda até não haver nada mais a fazer. A D. cuida de mim, come comigo entrecosto à mão enquanto agradece não almoçar sempre comigo, senão, estávamos umas baleias, diz ela, diz asneiras comigo e sabe tal como eu como um fodasse pode ser libertador! Lê os meus resumos em inglês antes de seguirem caminho. Pergunta-me pelo André, sempre no timing certo. Foi ela a primeira a quem dei o meu livro a ler para ter uma opinião externa, foi com ela que desabafei quando a minha tia Gigi ficou doente, e foi ela que no mesmo momento se ofereceu para seguir os registos; foi com ela que tanta parvoíce fiz e quero fazer. Sem saber, foi ela quem eu pedi à vida e que a vida me ofereceu.

Eu gosto mesmo muito de ti, como já te escrevi várias vezes.

Peço à vida que não me roube, que me deixe ser ciumenta e a tê-la para almoçar comigo sempre que dê - à terça, quero que ela me pergunte inúmeras vezes como vão as minhas corridas; quero mais desencontros de lanches quando vai buscar a menina, quero que ela se continue a queixar da minha falta de tempo para ela e para todos. Quero viver, quero que vivas muito mais. Mas vida, se desta vez não fores generosa comigo, por favor, sê generosa com ela. 

Eu já tenho demais. 
Por favor, cuida dela, eu cuido de mim. 


PS: daqui a uns largos 70 anos vamos ler isto de braço dado num lar qualquer, tu feia e eu com um buço gigante, mas mesmo nessa altura eu prometo que não estaremos desdentadas. 
Gosto mesmo muito de ti.

Comentários

Unknown disse…
Minha querida amiga,
Sei que te falhei mas a vida traiu-me. Deu-me um homem para amar, uma filha linda para amar e cuidar e amigos fantásticos para estimar sempre. E depois tirou-me a saúde. A vida achou que aos 29 eu merecia passar por uma provação destas. Que merecia reconhecer-me como mortal (como era bom viver na ignorância) e reconhecer como real um receio que até agora vivia só na minha mente.
Perdoa-me por não saber dizer "preciso de ti", por não dizer "gosto mesmo muito de ti" vezes suficientes e por te fazer sentir esquecida. Espero que um dia compreendas.

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