As parvas amantes.

Ela falou com a voz grossa, sem amargura, mas com uma imensidão de dor. As amarras não eram suas, o pecado não a cometera ela, mas era ela, agora diante de mim, a origem do olhar de escárnio na rua. Nasceu de sua mãe, sempre casada com quem fora ensinada a chamar de pai e que a educara como tal ciente de ser seu pai até à sua morte há precisamente 5 anos. 
No mesmo dia, após 5 anos, Maria soube minutos antes da morte de sua mãe que não era filha dele, mas sim do seu amante de há vinte anos, o António Vilarinho, dono da grande quinta da vila, o homem mais rico da região, mas também o mais porco. Nesse mesmo dia, morreu Maria e a sua estúpida mãe. A única diferença, foi que Maria continuou a respirar com um coração retalhado por uma mãe que para se libertar dos seus pecados antes de encarar a face de São Pedro, escorraçou uma filha que agora não tinha somente pai, também não tinha mãe.  
Maria, era agora presunçosamente falada na pequena vila, pois no pardacento quarto onde sua mãe definhava nas última horas, a seu lado prostrada estava a sua irmã Lucília, a sujeita mais alcoviteira e parvajola da vila e redondezas. Ainda a defunta estava quente, já meia vila sabia as duas novidades. Como pode alguém prorrogar tamanha dor? 
Mas o seu maior problema, não era esse.
Claro que Maria não era de todo indiferente ao falatório, como o poderia ser? Ela era a vítima e não a culpada. Perguntava-se sem cessar, porque motivos a mãe o dissera no leito da morte? Porquê matar medrosamente a filha que sempre fora a predilecta de seu pai? Porquê rasgar-lhe o ventre quando os seus 2 filhos gémeos haviam fugido em vésperas da partida do Ultramar sem nunca mais regressar. Eram duas, as campas vazias no cemitério do Alto do Liz em memória aos filhos não retornados, o luto parecia-lhes desavergonhadamente mais fácil a defuntos do que a quem de própria vontade se fez morto. 
Mas porque raio era ela filha de uma puta? Durante 20 anos...
Maria já tinha ouvido inúmeros casos desses em Vilarinho com praticamente todas as lacrais da vila, mas nunca, por momento algum, lhe chegara passara pela cabeça ou lhe chegara aos ouvidos que sua mãe também pertencia ao género. Ouvira ao longe no sussurro de sua tia Lucília, que os filhos varões tinham já advogados a tratar de tudo para que ela não visse sequer a cor do brasão da família. Maria não queria nada que fosse oriundo desse imundo patife, queria apenas que lhe devolvessem o pai que ela igualava nos gestos, nas feições e no terno olhar. 
Como pudera a sua mãe emergir da renúncia a um amor próprio para se deixar levar? Quer dizer, sabia lá ela se era a sua mãe quem motivava o estafermo? Como pudera pertencer ao mesmo corpo, a mais carinhosa e atenta mãe e também a mais cruel e desonesta esposa? Se o peixe morre pela boca, como se diz em proverbosia que desta água não beberei, que o anzol espete bem fundo, a ponto de sangrar até ficar muda e engolir com bons golos de sangue as palavras proferidas. Se estava a definhar, que levasse para o leito da morte os segredos que mantera em vida, escusava de os cá deixar, soltos em fortes labaredas que queimavam na sua pele, impedindo-a de os esquecer. 
Mas se de tudo isto, algo era pior, esse algo foi o que a mãe lhe disse no último suspiro. "Soube que eras filha dele no momento em que nasceste. Tens acima do teu umbigo o mesmo sinal que ele, exatamente no mesmos sítio." O sinal que até àquele momento lhe parecia de sorte, em forma de trevo de quatro folhas, era agora o símbolo do seu infortúnio, da vida sempre igual, mas que aos seus olhos no presente, era totalmente desconhecida.  
Ainda estava a terra por assentar sobre a mãe defunta, já a ideia de tatuar algo sobre o marco da infelicidade lhe pairava no pensamento. Mas o que devo eu aqui tatuar? 

Maria nada tatuou, nem nessa noite, nem nas seguintes. Nessa mesma noite pegou na faca do mato do pai que já não lhe era nada, começou a escrutinar em minúsculos pedaços o seu ventre, não mais teve dor, além da que já sentia, tamanho era o nojo que sentia de si mesma causada pelo indesejado sangue que lhe alimentava o corpo. Morreu em paz, quando ao fechar os olhos deixou de avistar o sangue que jorrava do seu corpo, de sentir a boca férrica e viu João Lopes, seu pai a pegar-lhe na mão carinhosamente, como sempre fazia quando sentados à mesa.

Foi Lucília quem a encontrou na manhã seguinte, sabendo de antemão que tudo não passava de uma cruel mentira da sua irmã ao qual havia pactuado horas antes. Sempre suspeitara que atrás de carinhosos olhares, a sua irmã nunca havia suportado a força do amor do seu marido à filha que esta tia segurava prostrada em seus braços. Também Lucília fora amante de Vilarinho e tal sinal nunca existira. E como tal acontecera? Lucília apanhara-os uma única vez e em troco do seu silêncio, exigiu que Vilarinho deveria fazê-la mulher todas as terças-feiras de meses par e assim foi, secretamente, até ele perder o seu famoso fulgor. 

Dói mais quando nos maltratam propositadamente. 

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